Artigo: Eliminar o desmatamento para alavancar a resiliência climática

MERCEDES BUSTAMANTE – Professora titular da Universidade de Brasília, é presidente da Capes

Em 20 de março, o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (sigla em inglês, IPCC) lançou o relatório que sintetiza os relatórios produzidos em seu sexto ciclo de avaliação. A mensagem não deixa dúvidas: mais de um século de queima de combustíveis fósseis e uso insustentável dos recursos naturais levaram a um aquecimento global de 1,1°C acima dos níveis pré-industriais, que hoje se traduz em eventos climáticos extremos mais frequentes, mais intensos e mais perigosos para a natureza e para as pessoas em todas as regiões do mundo. Cada incremento do aquecimento resulta em rápida escalada dos impactos negativos e por isso o conjunto de soluções já disponíveis e descritas pelo IPCC deveriam estar no centro dos debates públicos.

Pouco mais de duas semanas depois da contundente compilação dos últimos sete anos de trabalho do IPCC, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou os dados referentes aos alertas de desmatamento no cerrado e na Amazônia no primeiro trimestre de 2023, indicando um recorde de 1.375,38km² no cerrado e a segunda pior taxa da série histórica na Amazônia.

O desmonte sistemático das estruturas de proteção ambiental e controle do desmatamento perpetrado pela gestão Bolsonaro demonstra um efeito persistente mesmo diante das ações já implementadas nos primeiros meses de 2023 para a retomada de uma efetiva governança ambiental.

A continuidade da tendência alarmante de converter as inestimáveis paisagens naturais do cerrado para outros usos, em especial agricultura e pecuária, contrapõe-se ao alerta da ciência sobre a emergência climática e o conhecimento acumulado sobre a relevância desse bioma. O cerrado é uma das savanas mais extensas e diversas do mundo e um sumidouro crucial de carbono. Desde os anos 1970, a expansão agrícola no cerrado levou à conversão de quase metade da sua vegetação original em pastagens e terras de cultivo para abastecer os mercados internacionais e hoje 70% da soja importada pela União Europeia ligada à conversão de ecossistemas naturais é proveniente desse bioma. Os efeitos ambientais dessa transformação em grande escala já foram detectados.

Uma análise do impacto da expansão da agricultura no clima regional do cerrado mostrou que não só as florestas têm impacto no clima, mas também a perda de savanas — que são as mais abundantes e ameaçadas no bioma — e de áreas campestres. Os estudos climáticos geralmente ignoram esses dois últimos tipos de vegetação, apesar das suas funções críticas para a regulação climática e de armazenamento de carbono. A perda natural de vegetação em todo o bioma já tornou seu clima mais quente e mais seco.

Efeitos mais pronunciados podem ser vistos em áreas vulneráveis, tais como na fronteira agrícola no norte, conhecida como Matopiba (junção dos estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), onde se concentram os alertas de desmatamento, o que é preocupante dado que os efeitos das mudanças climáticas vão exacerbar o calor e a seca causados pela perda de cobertura vegetal nativa. Os rios do cerrado, responsáveis por grande parte do abastecimento de água e produção de eletricidade no Brasil, perderam 15,4% de seu caudal de água devido às mudanças de uso da terra e clima entre 1985 e 2022. Se a destruição do bioma continuar no ritmo atual, um terço do volume de água será perdido até 2050. Oito das 12 regiões hidrográficas do Brasil recebem água deste bioma, incluindo o Pantanal.

O desafio no cerrado é agravado pelo fato de que pelo menos 33 milhões de hectares de áreas nativas na região não têm proteção legal. No entanto, é possível reconciliar a recuperação desse bioma através da expansão agrícola em áreas já degradadas, sem conversão de novas áreas. O monitoramento da cobertura e uso do solo do cerrado com base na detecção remota tem progredido significativamente nas últimas duas décadas fornecendo mecanismos robustos para distinguir o complexo mosaico da vegetação natural, avaliar os níveis de produtividade de pastagens e a dinâmica das terras agrícolas. Juntamente com a proteção desses ricos ecossistemas, ciência e tecnologia são essenciais para orientar os esforços de planejamento do uso do solo que são consistentes com a transformação para uma economia de baixo carbono.

Em um recente estudo publicado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, a economista Mariana Manzucatto analisa como transformar desafios estruturais de nossa região em oportunidades estruturais para o crescimento inclusivo, o desenvolvimento sustentável e a prosperidade compartilhada. Entre os desafios estruturais está o desenvolvimento altamente dependente dos recursos naturais, das commodities e seus preços.

Em seus múltiplos estudos, destaca-se a abordagem orientada a uma missão que redirecionaria as políticas verticais de setores isolados para uma articulação de todos os setores no enfrentamento de grandes desafios. Hoje, o Brasil tem a oportunidade de transformar o combate à mudança climática pela eliminação do desmatamento como a missão que catalisaria o apoio transversal de todos os setores e atores — governos federal, estaduais e municipais, sociedade civil e setor privado — para a consecução de objetivos de um desenvolvimento resiliente ao clima, com justiça social e equidade.

 

Fonte: Correio Braziliense