Cotas reduziram distância entre negras e brancas na universidade

“Fiz questão de ter uma formatura, claro, e fazer tudo a que tinha direito”, lembra a analista de dados Lorena Pereira, 28, sobre o evento em março de 2017. Há dez anos, ela entrou na UNEB (Universidade Estadual da Bahia) por meio de cotas raciais, e se tornou a primeira da família a entrar em uma universidade pública. Depois, a ter um diploma de mestrado e a sonhar com um doutorado.

“Quando entrei na universidade, aos 19, minha perspectiva era me formar, conseguir um emprego legal, com renda melhor do que meu pai e minha mãe, e conseguir sustentar minha família. Mas depois de entrar, pensei: quero ser uma cientista. Um mundo se abriu”, diz.

No final da sua graduação em Sistemas de Informação, ela entregou uma tese sobre o reconhecimento de discursos de ódio contra negros e mulheres nas redes sociais. Na sequência, fez mestrado em Ciência da Computação na UFCG (Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba) e agora trabalha como analista de dados de uma editora de São Paulo, ligada a projetos sociais.

A implementação de políticas afirmativas —prevista na Lei de Cotas, que completa dez anos neste mês de agosto— levou mais mulheres negras às universidades e diminuiu a desigualdade entre brancas e negras, segundo dados analisados por Universa, ao reservar vagas para pessoas pretas e pardas.

Isso se deu, principalmente, em cursos de exatas, como a área de Lorena. Hoje, a legislação prevê a reserva de 50% de vagas para estudantes da rede pública de ensino e, dentro dela, subcotas para pessoas negras, indígenas e, mais recentemente, pessoas com deficiência.

Mulheres negras são um quarto dos alunos do ensino superior
Dos jovens que frequentavam educação superior em 2000, apenas 9,9% eram mulheres negras. As brancas eram quase metade, 44,5%. Os dados são do Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em 2010, dois anos antes da Lei de Cotas ser implementada, as negras aumentaram sua participação para 19,4% dos estudantes do ensino superior. Naquele ano, embora não existisse a lei federal de cotas, 65 instituições de ensino já tinham experiências próprias de ações afirmativas, inclusive a UNEB.

Em 2019, a proporção entre brancas e negras nas universidades ficou ainda mais parecida: do total de alunos frequentando faculdades e universidades no país, sejam públicas ou privadas, brancas ainda eram maioria, representando 29,4% dos estudantes, mas as negras chegaram a 26,3%.

“Não foi apenas a Lei de Cotas que deu conta desse processo de ampliação. Mesmo assim, ela tem uma repercussão enorme para reserva de vagas e demais políticas que a gente chama de afirmativas”, explica Claudia Monteiro, pesquisadora do grupo A Cor da Bahia da UFBA (Universidade Federal da Bahia), onde estuda a presença de pessoas negras na universidade e contribui para o Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas, articulação de núcleos de pesquisa que produz dados e monitora as políticas de inclusão em diversas instituições do país.

Ela explica que outro fator importante para o cenário atual foi o crescimento do número de vagas e do número de instituições públicas e privadas no Brasil, o que fez com que as matrículas crescessem. Apesar disso, porém, os últimos anos foram marcados por cortes de verbas para universidades federais, o que levou a menos incentivos para pesquisa, bolsas de estudo e outros gastos básicos —o rombo é tanto que entidades chegaram a ameaçar fechar por falta de dinheiro.

Distância entre negras e brancas diminuiu mais em cursos de exatas
Felícia Picanço, professora do Departamento de Sociologia UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), coordena o Laboratório de Estudos sobre Diferença, Desigualdade e Estratificação, que pesquisou a alteração do perfil dos estudantes na instituição. No estudo, os mais de 150 cursos oferecidos pela instituição foram agrupados em cinco áreas: ciência e tecnologia centrada em matemática; ciência e tecnologia centrada em biologia e física; técnicos de saúde e informação; humanidades com maior seletividade, como direito e comunicação; e humanidades com menor seletividade, como ciências sociais e história.

Os resultados indicam que, entre 2012 e 2017, a distância entre mulheres brancas e negras teve redução em todas as áreas, mas principalmente nas ciências e tecnologias centradas em matemática. Em 2012, brancas eram 19,2% do corpo discente destes cursos, enquanto pretas e pardas eram 5,8%. Cinco anos depois, a diferença entre elas —que somadas ganharam mais representatividade, mas ainda são a minoria— diminuiu: 13,4% de brancas e 11,2%, respectivamente.

“Esse é um dado interessante para entender a dinâmica de gênero e raça nos cursos. Essa era uma área predominantemente masculina e branca, então há uma transformação interessante”, diz a pesquisadora. “Homens negros e mulheres negras duplicam sua participação, uma clara indicação de redução das desigualdades raciais. No entanto, com a ampliação dos homens negros e redução das mulheres brancas, a desigualdade de gênero se mantém estável”, diz.

Na área de humanidades, em 2012, a composição do corpo discente era de 40,5% de mulheres brancas e 11,5%, negras. Em 2017, os percentuais mudaram para 29,2% para brancas e 20,9%, negras.

“Em cursos de alta seletividade e procura, como medicina ou direito, ainda reside uma vantagem das mulheres brancas.”

 

‘A universidade é um espaço que nos pertence’

A pesquisadora Daniela Santa Izabel fez graduação por cotas e hoje também é cotista no mestrado em Ciências Sociais na UFRJ - Acervo pessoal - Acervo pessoal

A pesquisadora Daniela Santa Izabel fez graduação por cotas e hoje também é cotista no mestrado em Ciências Sociais na UFRJ Imagem: Acervo pessoal.

“Sou uma mulher negra, lésbica, suburbana da zona norte do Rio de Janeiro. Pertenço a esse grupo de pretos e pobres que, antes, nem mesmo se viam como pessoas que poderiam estar dentro das universidades. As cotas possibilitaram essa entrada, fazendo uma ponte para esse espaço que também é meu. É uma política que revolucionou o corpo estudantil das universidades”, diz a pesquisadora Daniela Santa Izabel, 25.

Daniela entrou na UFRJ em 2016. Para se manter, trabalhava como modelo fotográfica. Hoje ela cursa o mestrado em Ciências Sociais na mesma instituição, também como cotista, e ainda tem que se dividir entre a academia e outros trabalhos para complementar a renda. “As cotas não são uma oportunidade dada de mão beijada, não é esmola ou caridade. É o justo. É onde a gente repara, onde a gente beneficia grupos que estão ali e que precisam ficar ali naquele espaço.”

 

 

‘A universidade me ajudou, mas também colaborei muito com ela’

Aryani Marciano estudou Artes Visuais na USP - Acervo pessoal - Acervo pessoal

Aryani Marciano estudou Artes Visuais na USP Imagem: Acervo pessoal.

“Um professor uma vez disse que fui a quarta estudante mulher negra em 25 anos do curso de artes visuais da USP, que é muito elitizado. Não sei se isso é verdade, mas o fato de ele não ter notado outras mulheres negras também diz muito”, afirma a cantora, compositora e artista visual Aryani Marciano, 26.

Ariany entrou na USP em 2014. Moradora do bairro Morro Doce, na periferia de São Paulo, ela conta que era contra as cotas raciais quando era mais jovem. “Quando fiz vestibulinho para entrar em uma ETEC [escola técnica] no ensino médio, achava que não precisava. Só quando entrei na escola e notei as poucas pessoas pretas percebi que era necessário.”

Ela afirma que as cotas mudam o curso da vida das pessoas negras, mas a presença delas também altera a universidade. “O currículo do meu curso era muito eurocêntrico, e questionei isso. Fui muito perseguida por pedir uma mudança, inclusive por alguns professores. Um deles chegou a falar que eu tinha que estudar no Museu Afro Brasil, que tinha que ir para outro lugar.”

Com os anos, a estudante foi observando o aumento de seminários, congressos, artigos e outros eventos que debatiam essas e outras questões —na sua área, de artes e cultura, e em outras, como física, ciência e medicina. “Não só estamos aprendendo o que tem que ser ensinado, mas também estamos discutindo sobre isso, sobre os parâmetros desse ensino.”

Ariany se formou há dois anos, em 2020. “Ter feito uma universidade foi muito bom para o meu currículo, pro jeito que que a indústria me olha, que o mercado me olha. Mas acho que eu me sinto uma pessoa mais crítica, mais ativa. É mais do que só o diploma.”

Hoje, a cantora trabalha em um projeto autoral e com arte-educação. Nesta semana, ela embarca para um intercâmbio em uma instituição cultural de Maputo, capital de Moçambique.

 

Lei prevê revisão em 2022
O texto da lei aprovado em 2012 cita o prazo de dez anos anos para fazer uma “revisão” da legislação. A palavra tem suscitado uma disputa de narrativas: setores contrários às cotas têm usado a brecha para afirmar que isso significaria o encerramento da política e que deveria ser levado ao Congresso Nacional para uma nova renovação.

Mas a pesquisadora Claudia Monteiro afirma que é a revisão, na verdade, é o momento de entender o que funciona e quais foram os efeitos da ação afirmativa. “Já existe um entendimento de que ela não precisa ser suspensa, mas, sim, ser avaliada.”

Um dos pontos, por exemplo, é pensar na permanência dos cotistas na universidade. A estudante Dayla Brasil, de 24 anos, está na reta final do curso de Engenharia Civil na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Ela entrou em março de 2017, também por meio do sistema de cotas. Para ela, um ponto para se aprimorar na política é pensar na manutenção dos estudantes de baixa renda.

Estudante em tempo integral, ela ganha um auxílio de R$ 600, que a ajuda a pagar as contas e a continuar na faculdade. De Saquarema, na região dos Lagos, ela afirma que não teria como se manter no Rio de Janeiro se não fosse o auxílio.

A estudante de engrenharia civil Dayla Brasil, que entrou na Uerj por meio das cotas  - Acervo pessoal - Acervo pessoal

A aluna de engenharia civil Dayla Brasil: estudar só foi possível com auxílio para alunos de baixa renda Imagem: Acervo pessoal.

“Minha experiência na faculdade tem sido dias de lutas, dias de glória. Não é fácil. Já escutei professores dizendo que não queria saber dos meus problemas quando, no primeiro período, eu não tinha um notebook para a aula de programação.”

Fonte: UNIVERSA UOL