Primeira mulher a assumir a Academia Brasileira de Ciências (ABC) em 105 anos, a bioquímica Helena Nader, convidada da Live do Valor da quarta-feira (20), defende o investimento em ciência como política perene de Estado. Ela alerta ainda para fenômeno crescente no financiamento do setor nos últimos anos: a substituição progressiva do orçamento regular de instituições por repasses inconstantes do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (FNDCT). Para piorar o cenário, afirma, a gestão desse fundo está asfixiada por manobras fiscais do governo federal.
“O Brasil investe muito pouco em ciência e educação. E o investimento na cadeia de educação, ciência básica e aplicada e inovação seguem sendo cortados. A inovação no Brasil está em 60º lugar entre 200 países. Entretanto, entre os 10 bancos mais rentáveis do mundo, quatro estão no Brasil”, compara ela, para sublinhar a disparidade das opções do Estado brasileiro.
“O Brasil não consegue ter a clara noção de que, sem educação e ciência, a economia e o emprego não vão florescer”. Nader cita pesquisa do Fundo Monetário Internacional (FMI), segundo a qual o investimento em ciência básica será motor para a recuperação econômica no pós-pandemia.
Sobre o FNDCT, ela projeta que o instrumento deve arrecadar entre R$ 8 bilhões de R$ 8,5 bilhões este ano por meio dos 14 fundos setoriais que o irrigam. O Fundo foi criado para atuar de forma suplementar no fomento à inovação, mas tem sido a tábua de salvação de universidades, institutos federais e mesmo projetos no âmbito das Forças Armadas, o que traz instabilidade e disputa irracional por recursos para o setor, diz a pesquisadora e professora titular da Escola Paulista de Medicina, na Unifesp.
Após experimentar a pior execução orçamentária dos últimos dez anos — R$ 3,3 bilhões discricionários (livres de gastos com pessoal), dos quais somente R$ 2,1 bilhões foram executados —, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) teve sua dotação reajustada para R$ 6,9 bilhões no Orçamento de 2022. O montante geral previsto para a pasta e suas autarquias, que inclui a folha de pagamentos, é de R$ 9,9 bilhões. Mas nem o mais otimista dos cientistas tem razões para crer que esse montante será de fato aplicado este ano.
Os contingenciamentos, inaugurados ainda sob os governos do PT, se tornaram mais agressivos nas gestões Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL). Esse ano a história deve se repetir, com um agravante: pelo menos metade do montante discricionário, cerca de R$ 3 bilhões, vem do FNDCT, que tem substituído os orçamentos próprios das instituições na linha do que é exposto por Nader.
Mais do que impedir a retenção dos recursos, a regra transformou o instrumento em fundo financeiro, o que, na prática, proíbe o governo de verter recursos que sobram de um exercício para fazer superávit primário. Os valores agora ficam acumulados para execução futura.
Incide aí uma das manobras da equipe econômica apontadas por Nader. O governo federal conseguiu aprovar no Congresso emenda constitucional prorrogando os efeitos da lei que mudou as regras de utilização do FNDCT para 2024 — retroativamente a 2021, este ano e 2023 o contingenciamento segue autorizado.
Não bastasse, Nader sugere que o governo atua para inviabilizar recursos do fundo. Historicamente, o plano de investimentos do FNDCT divide seus recursos em empréstimos reembolsáveis a empresas e subvenção à iniciativa privada e instituições, quando não há obrigação de restituir o dinheiro. Em geral, a parcela voltada a empréstimos gira em torno de mercado.
Mas nesse ano, o Conselho Gestor do FNDCT, dominado pelo governo, impôs percentual de 50% nessa frente. Os recursos não devem ser requisitados pela iniciativa privada, ficando livres para recolhimento do Tesouro ao fim do ano.
Nader acrescenta que as custas da equalização dos juros rebaixados desses empréstimos vêm da outra metade do FNDCT, dedicada à subvenção, restringindo ainda mais esses repasses. Dessa forma, prevê, todo o tecido de ciência e tecnologia do país terá de dividir, na melhor das hipóteses, R$ 2 bilhões de um universo potencial de R$ 8 bilhões do FNDCT este ano.
“O cobertor é curto e ainda se disputa as migalhas”, diz ela, sobre a partilha do dinheiro entre universidades e seis organizações sociais (OS), como as que administram o acelerador de partículas Sirius e o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa).
Nader lembra, ainda, que parte das dificuldades à boa gestão do FNDCT tem origem na diminuição da participação de entidades da sociedade civil, como a ABC e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em conselhos de decisão de políticas públicas logo no início do governo Bolsonaro. Assim como em outros fóruns, no do FNDCT, o governo passou a controlar a maior parte das cadeiras, impondo decisões favoráveis a seus interesses, como a política fiscal, em detrimento das demandas das áreas assistidas.
Fonte: Valor