No TCC, a estudante abordou o protagonismo das mulheres Kaingang e foi avaliada com nota máxima pela banca
Nesta sexta-feira, 15 de março, no Salão de Atos da UFRGS, ocorre a solenidade de formatura da turma de Ciências Jurídicas e Sociais. Entre os formandos, está Viviane Belini: a primeira mulher indígena a concluir o percurso formativo na Faculdade de Direito da UFRGS desde que a Universidade, em 2007, instituiu o Processo Seletivo Específico para Ingresso de Estudantes Indígenas (PSEI). Antes de Viviane, o único indígena a se formar no Direito foi Marcos Kaingang, que atualmente dirige o Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas no Ministério dos Povos Indígenas.
Na avaliação da formanda, a inclusão do PSEI foi um grande avanço nas Ações Afirmativas, visto que o ingresso na universidade é uma das ferramentas de luta pelos direitos indígenas. Para a orientadora da estudante, Dalva Carmem Tonato, professora de Direito Romano e História do Direito, este é um momento ímpar na história da UFRGS. Dalva, que orienta todas as monitorias indígenas na Faculdade de Direito, conheceu Viviane em seu primeiro semestre da graduação e logo viu o potencial da aluna. “Acima de tudo, percebi nela o propósito de estar ali para colher os frutos dos estudos. Também observei discernimento e uma postura muito respeitosa perante os demais, assumindo uma atitude de preservação de liberdade contra aquilo que percebia como abusivo ou como ingerência indevida”. A docente também destaca a importância dos programas voltados à permanência dos alunos indígenas na Universidade, como as monitorias indígenas, a Coordenadoria de Ações Afirmativas (CAF) e a Casa do Estudante Indígena.
Foto: Arquivo pessoal
Direitos indígenas
Viviane nasceu no Território Indígena de Votouro, na região norte do Rio Grande do Sul. Em 2017, passou no vestibular pelo PSEI e, aos 18 anos, começou seu percurso como aluna da UFRGS. Desde o início, sua trajetória acadêmica esteve focada nos direitos dos povos indígenas. Também participou do Saju – Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS, um projeto de extensão no qual os estudantes prestam atendimento às pessoas que não podem pagar por um advogado. Lá, a aluna trabalhou no núcleo Semear, que presta assessoria legal aos povos indígenas e remanescentes quilombolas.
Entre 2021 e 2022, realizou pesquisa de iniciação científica sobre a violência contra as mulheres kaingang no RS, que posteriormente lhe rendeu o Prêmio Jovem Pesquisador. A partir do estudo, Viviane começou a questionar como tratar a temática das mulheres indígenas dentro do Direito. No decorrer da pesquisa, direcionou seus interesses para o protagonismo feminino kaingang e a forma como o papel político desempenhado pelas mulheres se alterou pelo contato com povos não indígenas, especialmente a partir da instauração do Estatuto Jurídico da Tutela sobre os Povos Indígenas em 1973. Viviane apresentou seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), intitulado “O protagonismo feminino Kaingang: entre os costumes e o Direito brasileiro”, à banca avaliadora em 19 de fevereiro e recebeu nota A e elogios dos avaliadores.
A banca foi composta pela orientadora Dalva Tonato, além da coorientadora Juliane Sant’Ana Bento, professora no Departamento de Direito Público e Filosofia do Direito; pela professora Maria Cláudia Mercio Cachapuz, do Departamento de Direito Privado e Processo Civil da Faculdade de Direito da UFRGS; e por Joziléia Daniza Jagso Kaingang, doutora e mestre em Antropologia Social pela UFSC e secretária Nacional de Articulação e Promoção dos Direitos Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas desde 2023.
Viviane explica que, apesar de nas comunidades kaingang as mulheres exercerem papéis atribuídos ao âmbito doméstico e ao cuidado com os filhos, elas sempre foram politicamente ativas e envolvidas nas decisões de seus territórios. Ao contrário do que ocorre nas sociedades brancas, nas quais as atividades domésticas são consideradas subalternas, a cultura kaingang valoriza essas funções, embora não limite as mulheres a elas. “Existe uma complexidade por trás desse papel, porque há várias formas de articulação feminina no ambiente doméstico. A própria Joziléia falou sobre a política na cozinha das kaingang, analisando como elas utilizam esses espaços domésticos, de cuidado dos filhos e com a família para fazer a política delas também. Com a interferência dos modos de vida ocidentais dentro dos territórios, tais atribuições passaram a ser consideradas submissas, o que acabou inferiorizando as relações e articulações que as mulheres tinham dentro e fora de seus territórios”, observa.
Tutela imposta
A opressão e as alterações culturais dos povos kaingang se aprofundaram com a implementação do Estatuto Jurídico da Tutela, instituído durante a ditadura civil-militar. Parte do Estatuto do Índio, a lei separava os indígenas em três categorias: os “isolados”, que tinham nenhum ou pouco contato com o que é denominado de comunhão nacional (em outras palavras, a sociedade não indígena, em especial a branca); os “em via de integração” e os “integrados”, que já haviam assimilado a cultura ocidental, abandonando a sua. O documento somente garantia o pleno exercício dos direitos civis aos indígenas “integrados”, enquanto considerava “incapazes” as outras categorias, retirando-lhes o direito de entrar em ações na justiça e legando ao órgão federal de assistência aos indígenas – o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), atual Funai – o papel de tutelá-las em ações legais. Apenas com a Constituição de 1988 a Tutela foi banida e os direitos dos povos originários plenamente reconhecidos.
Em seu TCC, Viviane tratou de compreender como, nessa nova estrutura patriarcal, sexista e racista, as kaingang trabalham e constroem caminhos a fim de se tornarem protagonistas de suas próprias histórias e da luta por seus direitos. Segundo ela, apesar de existir uma vasta bibliografia sobre os costumes, tradições e cosmologia do povo kaingang, são escassas as pesquisas a respeito da complexidade do papel das mulheres nessas sociedades. Entre os estudos referenciados em seu trabalho, figuram os de Joziléia Kaingang e Suzana Kaingang, a primeira mulher indígena a se doutorar na UFRGS.
Vivências pessoais e coletivas
Para além do estudo bibliográfico, a originalidade do trabalho está na inclusão das experiências de vida da autora e nas entrevistas com mulheres kaingangs de três diferentes gerações, já que Viviane é narradora em primeira pessoa dessa história. Nas palavras dela, a pesquisa é um ato de “escrevivência”, termo cunhado pela linguista e escritora Conceição Evaristo para designar uma escrita que carrega em si a vivência de uma coletividade, marcada pela experiência de raça e gênero.
“O fato de escrever sobre nós e sobre nossos costumes contribui ainda mais para o trabalho, porque não fica um estudo fechado, feito sem nenhuma troca com o objeto estudado. No caso, eu vivo isso e compartilho das ideias das mulheres que foram entrevistadas. Também foi um processo de aprendizado pra mim, porque, por mais que eu seja uma kaingang, tem muitas coisas que fogem do meu domínio”, revela.
Nas conversas, feitas ao redor de um fogão a lenha, Viviane procurou deixar as entrevistadas à vontade para se expressarem livremente. Enfim, com propriedade, conclui: “Mesmo estando em espaços de decisão diferentes, em posições diferentes das que são naturalmente associadas a elas, as mulheres conseguem manter seus costumes e são os agentes que mais preservam a cultura kaingang dentro dos territórios”.
É assim, costurando vivências pessoais e conhecimento acadêmico, costumes e o Direito brasileiro, que Viviane conquista agora o título da graduação – e vai prosseguir a trajetória acadêmica com o mestrado. Tal como as mulheres contempladas em seu trabalho, segue conquistando seu espaço na luta pelos direitos dos indígenas.
Fonte: UFRGS