CAPES fomenta pesquisa da UFRJ sobre tratamento de lesões medulares

Pessoas na fase aguda e cães na etapa crônica voltaram a ter movimentos em tratamentos iniciados com injeção de polilaminina

Um trabalho coordenado por uma professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com participação de bolsistas da CAPES/MEC apresentou resultados promissores no combate a lesões na medula espinhal. Homens, mulheres, cachorros e ratos lesionados recuperaram movimentos após receberem um tratamento iniciado com injeções de polilaminina, substância produzida pela equipe do projeto, e continuado com fisioterapia.

Junto ao cérebro, a medula espinhal forma o sistema nervoso central. Sua estrutura começa ainda na cabeça e se prolonga até a lombar. Lesões que a afetam costumam ter consequências graves, como paraplegia, tetraplegia e morte. O uso da polilaminina tem se dado para regenerar axônios (parte dos neurônios) e permitir o “trânsito” de informações pelo corpo. E, com isso, retomar movimentos.

A participação da CAPES/MEC foi decisiva já nos primeiros testes com seres vivos, nos anos 2000. À época, a então pós-graduanda em Ciências Morfológicas pela UFRJ Madalena Barroso, orientada pela professora que coordena o projeto, Tatiana Sampaio, recebeu bolsa de doutorado-sanduíche da Coordenação para cumprir parte das pesquisas na Universidade de Miami, nos Estados Unidos. Por lá, conduziu os primeiros testes das injeções entre 2004 e 2005.

Imagem:  Madalena Barroso (3ª à esquerda) nos tempos de Universidade de Miami (Arquivo pessoal)
Imagem: Madalena Barroso (3ª à esquerda) nos tempos de Universidade de Miami (Arquivo pessoal)

“Sob a supervisão do meu orientador nos EUA, Martin Oudega, operei uns 60 ratos”, recorda Madalena. “Conseguimos ver a diferença entre o animal que tinha sofrido a lesão e não tinha recebido laminina e aquele que havia recebido”, recorda. No retorno ao Brasil, Madalena trouxe parte do material e ensinou a equipe a realizar o procedimento da injeção. O projeto seguiu com outra pesquisadora, e a experiência com roedores rendeu um artigo no The FASEB Journal, em 2010.

Essa descoberta e outras subsequentes abriram caminho para o estudo experimental com oito pessoas ocorrido entre 2016 e 2021, em hospitais do Rio de Janeiro. Os pacientes receberam injeções em até três dias após se machucarem. Dois deles faleceram por condições não ligadas ao tratamento e seis recuperaram parte dos movimentos. Os participantes eram vítimas, por exemplo, de acidentes de carro, quedas e ataques por arma de fogo.

“Só selecionamos pacientes com lesões completas na medula. A literatura aponta que não mais do que 15% das pessoas com esse diagnóstico recuperam funções motoras”, explica Tatiana Sampaio. “No nosso caso, 75% evoluíram da lesão completa para a lesão incompleta com controle motor. Se avaliarmos apenas os que sobreviveram, são 100%”, continua a pesquisadora, que chefia o Laboratório de Biologia da Matriz Extracelular do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ.

Imagem: Nilma Palmeira de Melo (à esquerda) na sessão de fisioterapia em que ficou em pé pela primeira vez após o acidente (Print de vídeo de arquivo pessoal)
Imagem: Nilma Palmeira de Melo (à esquerda) na sessão de fisioterapia em que ficou em pé pela primeira vez após o acidente (Print de vídeo de arquivo pessoal)

Uma das pessoas selecionadas foi Nilma Palmeira de Melo, à época com 57 anos. Ela deu entrada no hospital sem conseguir se mover em 24 de setembro de 2018 após cair da laje de casa. Lesionou a T2, vértebra torácica crucial para a sustentação do corpo e proteção da medula espinhal. “A altura da lesão era para me deixar até nos aparelhos. Tive o pulmão perfurado duas vezes”, recorda.

A paciente entrou acordada na unidade de saúde. Consentiu com o tratamento e recebeu a injeção de polilaminina pouco mais de 24 horas depois de sua chegada. Passou por cirurgia e ficou quase um mês internada, até 12 de outubro. Usou colar cervical por quatro meses. Aos poucos, foi retomando os movimentos. Com quatro meses de fisioterapia, levantou-se e ficou em pé, com apoio. Passados um ano e dois meses, virou-se sozinha na cama. “Foram os dois momentos mais emocionantes”, destaca.

Sete anos depois da queda, Nilma, movimenta os braços, o tronco e consegue se sustentar em pé com apoio. É artesã e dona de casa, atividades que exerce diariamente. “Meu marido adaptou a cozinha. Faço o jantar, gosto de novidade, de variar nas comidas. Dobro roupa pequena. Arrumo minhas gavetas. Pinto tela, pinto cerâmica. Faço reciclagem”, conta.

Imagem: Bruno Drummond de Freitas internado após sofrer acidente que poderia deixá-lo tetraplégico (Arquivo pessoal)
Imagem: Bruno Drummond de Freitas internado após sofrer acidente que poderia deixá-lo tetraplégico (Arquivo pessoal)

Meses antes da queda de Nilma, no dia 28 de abril do mesmo ano, o bancário Bruno Drummond de Freitas, então com 23 anos, viajava de São Paulo (SP) para Teresópolis (RJ) de carro com a família. Dormia no banco de trás, sem cinto de segurança, quando o veículo capotou. Acordou no hospital sem conseguir se mexer. “Tive consciência de que algo grave tinha acontecido, mas não me lembrava de nada”, diz.

Antes de despertar, Bruno havia recebido uma injeção de polilaminina. O tio dele, médico, deu o aval para Tatiana Sampaio e equipe, que procuravam pacientes com lesões recentes na medula espinhal. Em menos de 24 horas, o sobrinho recebeu a injeção de polilaminina. No início do tratamento, recorda-se o rapaz, os médicos acreditavam que ele não voltaria a andar. Três semanas depois, porém, Bruno mexeu o dedão do pé.

Apesar de achar que não era muita coisa, o episódio animou a equipe que o acompanhava. Um ano e cinco meses depois, em setembro de 2019, Bruno já conseguia caminhar, fazer exercícios e arriscou uma viagem com a mãe para o Jalapão (TO). Uma vida independente, que continua a ser realidade, seis anos depois, para o agora homem de 31 anos, que retomou a atividade profissional como bancário. “Tenho limitações, como não conseguir correr muito rápido ou jogar futebol, mas, perto do que poderia ser, não é nada”, explica.

O experimento com humanos deixou, porém, uma questão em aberto. Essa recuperação seria possível a longo prazo? Daí, veio um estudo clínico veterinário com seis cães com lesões crônicas. Bichinhos que há tempos não tinham mais capacidade de movimentar as patas traseiras. Depois da injeção com polilaminina (aliada a outras substâncias, já que nesse caso já havia cicatrização) e tratamento contínuo de fisioterapia, recuperaram parte das funções motoras. A experiência foi descrita em artigo publicado na revista científica Frontiers in Veterinary Sciences em agosto.

Esses resultados são consequência de quase 30 anos de trabalho. O projeto evoluiu ao ponto de Tatiana Sampaio firmar parceria com a empresa farmacêutica Cristália. O laboratório tem fabricado a polilaminina em larga escala e, segundo dados do próprio, já investiu cerca de R$ 28 milhões. O acordo para a co-propriedade do medicamento foi fechado em 2021.

Imagem: Bruno Drummond de Freitas levantando halteres no processo de recuperação (Print de vídeo de arquivo pessoal)
Imagem: Bruno Drummond de Freitas levantando halteres no processo de recuperação (Print de vídeo de arquivo pessoal)

Primórdios e financiamento público
O início dessa história remonta a 1998. Tatiana Sampaio tinha curiosidade em se aprofundar na associação de proteínas. Encontrou frascos de laminina — proteína encontrada no corpo, naturalmente — no laboratório. Obteve a polilaminina a partir da polimerização da molécula.

A continuidade do trabalho levou à constatação de que a molécula polimerizada mostrava eficiência na recuperação neuronal, em especial nos axônios, parte alongada dos neurônios que leva a mensagem do cérebro para os músculos e permite os movimentos. E também faz o caminho contrário, o que se traduz na sensibilidade.

Com isso, vieram os testes em roedores, caninos e pessoas. Neles, a laminina tem sido extraída de placentas. Estas são comumente descartadas nos procedimentos pós-parto e abundantes na matéria-prima base de todo esse trabalho.

A Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) foi a principal financiadora do projeto até a entrada da Cristália. A CAPES/MEC e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) se fazem presentes pela concessão de bolsas.

O ano de 2025 tem sido marcado por uma maior divulgação dos resultados por causa da obtenção da patente da polilaminina pela UFRJ, válida até 2027. O tratamento ainda não é realidade em larga escala. São necessários novos testes, estudos clínicos, que dependem de aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Fonte: CGCOM/CAPES