As trajetórias da cientista Ana Gabryele Moreira, 30, e do escritor Jeferson Tenório, 45, têm muito em comum: trabalham desde jovens, estudaram em cursinhos pré-vestibular comunitários, foram cotistas na universidade pública e, hoje, são pioneiros em suas áreas de atuação. Ela foi a primeira mulher negra a receber o Prêmio Marie Curie da Agência Internacional de Energia Atômica, entidade ligada à ONU (Organização das Nações Unidas). Ele foi o primeiro cotista negro a se formar na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e o terceiro autor negro a conquistar o Prêmio Jabuti de melhor romance literário, segundo levantamento do UOL.
Dez anos depois da aprovação da Lei de Cotas no Brasil, as trajetórias de ambos se entrelaçam com as de outros estudantes cotistas, que são os “primeiros da família” a conseguir espaço no ensino superior, entre eles, o ex-almoxarife Thiago Alberto de Mello, 30, de Botucatu (SP); Paulo Jeremias Aires, 23, do povo Akroá-Gamella, no interior do Maranhão; e Carlucia Alves Ferreira, 21, da comunidade quilombola Lagoa dos Anjos, na Bahia. Ao UOL, eles contaram sobre suas trajetórias e desafios até aqui.
O primeiro cotista negro da UFRGS
Jeferson Tenório é carioca radicado em Porto Alegre (RS). Autor de “O Avesso da Pele”, ganhou o prêmio Jabuti de melhor romance em 2021. O livro conta a história de Pedro, que, após a morte do pai, assassinado numa abordagem policial, sai em busca de resgatar o passado da família.
Além de escritor, Tenório é mestre em literaturas luso-africanas pela UFRGS, doutor em teoria literária pela PUC-RS e atua há 15 anos como professor de língua portuguesa e literatura na rede pública. A vida acadêmica teve seu ponto-chave ao ingressar em licenciatura em letras na UFRGS, tornando-se o primeiro cotista negro a se formar na instituição gaúcha.
Para ele, as cotas não só permitem que as famílias dos cotistas possam experimentar uma ascenção socioeconômica, mas também colocam em questão a autoestima de negros e indígenas.
“Na escola, a universidade não estava no nosso horizonte, parecia que era um espaço para outras pessoas. Talvez a branquitude não entenda como é não se sentir verdadeiramente habilitado para frequentar uma universidade”
Jeferson Tenório, escritor
Em casa, quem o incentivou a seguir estudando foi a mãe, Sandra Inês Tenório. A matriarca recortou do jornal um anúncio sobre um cursinho comunitário voltado para pessoas negras e entregou ao filho. O gesto o impulsionou a iniciar o curso aos 22 anos.
Apesar de tentar entrar em várias universidades, ele só foi aprovado para letras na Fapa (Faculdade Porto Alegrense), que era privada. Para não desistir dos estudos, foi preciso contar com a ajuda de familiares para pagar as primeiras mensalidades. Durante a graduação, entre os trabalhos como office boy, assistente administrativo e telemarketing, também surgiram as primeiras oportunidades dentro da sala de aula. Assim, tomou gosto pela coisa e decidiu que era isso que gostaria de fazer para o resto da vida.
Com o valor das mensalidades pesando cada vez mais no orçamento, ele resolveu tentar mais uma vez o vestibular da UFRGS em 2004. Dessa vez, passou, ainda que tenha sido preciso escolher o bacharelado em letras-inglês, um curso menos concorrido, e não a tão sonhada licenciatura em letras-literatura, modalidade que poderia o habilitar como professor.
Dentro da universidade pública, Tenório participou do movimento estudantil e de ações que pressionaram a administração da entidade a implementar as cotas – à época, a UnB (Universidade de Brasília) e a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) tinham seus próprios sistemas para integrar alunos oriundos de escolas públicas, de baixa renda, negros e indígenas.
A pressão deu frutos. Em 2008, a UFRGS passou a reservar 30% das vagas a estudantes oriundos de escola pública – metade desse percentual era destinado a candidatos negros. Com a novidade, Tenório prestou novamente o vestibular e, enfim, e via cotas, ingressou na licenciatura. Como já havia concluído algumas disciplinas em sua passagem pelo bacharelado, se formou antes da sua turma, em 2010, e nunca mais saiu da sala de aula.
Uma cientista brasileira e negra na ONU
Filha de um agente rodoviário e uma dona de casa, a cientista Ana Gabryele Moreira cresceu em Cajazeiras, na periferia de Salvador (BA). Primeira de sua família a acessar o ensino superior, ela ingressou no curso de física médica na UFS (Universidade Federal do Sergipe) em 2013, por meio da Lei de Cotas (12.711/2012), que destina 50% das vagas em instituições federais de ensino superior a estudantes oriundos de escolas públicas e também beneficia alunos negros, indigenas e com deficiência.
Em 2019, iniciou o mestrado em tecnologia nuclear na USP (Universidade de São Paulo) e, dois anos depois, tornou-se a primeira mulher negra a receber o Prêmio Marie Curie da Agência Internacional de Energia Atômica, entidade ligada à ONU. Com a premiação, a cientista receberá nos próximos meses uma bolsa entre 10 mil e 40 mil euros (entre cerca de R$ 50 mil a R$ 200 mil) para estudar no exterior.
O prêmio foi um reconhecimento por seu trabalho analisando a participação de mulheres negras no setor nuclear. Ao lado das cientistas Karoline Suzart, Nélida Mastro e Priscila Rodrigues, Ana Gabryele mapeou o perfil sociocultural de mulheres que trabalham no Ipen (Instituto de Pesquisa Energéticas e Nucleares), instituição associada à USP. Realizada em 2020, a pesquisa mostrou que 84% das mulheres que atuavam na área nuclear do instituto se autodeclaram brancas, e apenas 10%, negras.
“Ser a primeira mulher preta premiada na Agência reflete muito sobre a baixa representatividade de mulheres negras atuando nestes setores, ao mesmo tempo em que apresenta para a sociedade a possibilidade de mostrar o quanto é possível o nosso acesso aos setores da educação, pesquisa e ciência através das políticas públicas. É sobre ser um espelho social e racial para milhões de jovens periféricos”
Ana Gabryele Moreira, cientista
“Não queria ser o ‘neguinho do almoxarifado'”
Thiago Alberto de Mello, 30, conciliou a escola, o trabalho e um curso técnico como eletricista durante os três anos do ensino médio em Botucatu, no interior de São Paulo. Em 2010, matriculou-se em um curso pré-vestibular comunitário. Foram mais três anos de tentativas até ingressar em engenharia elétrica na UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná), via cotas, tornando-se o primeiro da família a acessar o ensino superior.
Thiago trabalha com projetos na área desde que se formou, em 2018. Para ele, só foi possível ascender socialmente por conta de sua entrada na universidade. “Hoje eu me visto do jeito que quero, ajudo minha mãe financeiramente. Foi desafiador, mas necessário para me tornar quem sou”, diz.
“Parecia que as pessoas de onde venho só tinham um destino: trabalhar em chão de fábrica ou no comércio. Como era almoxarife na época, eu só pensava que não queria ser o ‘neguinho do almoxarifado’, que era como me chamavam”
Thiago Alberto de Mello, engenheiro
Prestes a ser o primeiro arquiteto da aldeia
Estudar sempre foi o sonho de Paulo Jeremias Aires, 23, do povo Akroá-Gamella, do interior do Maranhão. Da aldeia Taquaritiuia, com cerca de 2 mil moradores, ele foi o primeiro de lá a acessar o ensino superior. Em 2018, ele foi aprovado em engenharia química na UFMA (Universidade Federal do Maranhão) via cotas. Após dois anos, no entanto, migrou para arquitetura e urbanismo, após ser aprovado na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), via vestibular específico, que reserva cerca de 1.600 vagas para candidatos indígenas de todo o Brasil desde 2019.
Por conta da pandemia, o primeiro ano da faculdade foi concluído remotamente. “Foi um período difícil por conta da qualidade da internet, que não era das melhores. Os professores também não entendiam muito bem. Sinto que eles não estão preparados para lidar com indígenas. É como se eu me sentisse excluído dentro da classe”, lembra.
Diante das dificuldades, Aires explica que tem recebido apoio de uma rede de indígenas que têm se articulado dentro da universidade para lidar com a chegada desses primeiros estudantes de povos originários. O grupo atua junto aos alunos auxiliando, seja com processos burocráticos ou com ações de acolhimento.
“Ter tido essa recepção foi muito importante para que eu conseguisse construir laços na universidade. Por causa da rede de apoio, a minha experiência na Unicamp tem sido muito positiva”
Paulo Jeremias Aires, estudante
A primeira médica e o desejo de ser exemplo no quilombo
Carlucia Alves Ferreira, 21, saiu da comunidade quilombola Lagoa dos Anjos, no centro-sul da Bahia, em 2021, com uma grande missão pela frente: formar-se em medicina na UFPel (Universidade Federal de Pelotas), no Rio Grande do Sul, a 2 mil km de casa.
“Quando passei, minha maior sensação foi de alívio. Saber que, com isso, vou poder dar um futuro melhor para a minha família não tem preço”, diz. A família, no entanto, teme não conseguir ajudar financeiramente a estudante a se manter em outro estado. Sua permanência na UFPel, até então, tem sido possível pelos auxílios moradia e alimentação oferecidos pela instituição.
Primeira de seu quilombo a conquistar uma vaga na universidade, Carlucia chegou a passar em enfermagem na Uneb (Universidade Estadual da Bahia), e ficar lá por três semestres. Mas ela queria algo maior. A aprovação em medicina, via cotas, foi um marco para sua comunidade, que agrega cerca de 30 famílias. “Decidi fazer medicina porque sempre vi meus familiares serem maltratados por médicos. Hoje em dia, [com minha entrada na universidade] meus primos, familiares e amigos da minha comunidade se sentem mais capazes”, conta a estudante.
“Ingressei em medicina graças às cotas, mas não foi mais fácil. Venho de um ensino público defasado, nunca tive dinheiro para pagar cursinho. Estudei em casa, com uma internet de péssima qualidade. Dei o máximo a minha vida inteira, enquanto o sistema me deu o mínimo”
Carlucia Alves Ferreira, estudante de medicina
Fonte: UOL