Falha do MEC em boletos impede alunos de prestar Enem; caso é levado ao MPF

O estudante baiano Thiago Alencar, 19, só conseguiu juntar os R$ 85 necessários para pagar a inscrição do Enem 2022 no prazo limite dado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), órgão vinculado ao MEC (Ministério da Educação). No entanto, ao chegar à lotérica por volta das 8h, no dia 27 de maio, o pagamento do boleto foi recusado. “Voltei para casa para tentar pelo aplicativo do banco e também não consegui”, conta.

Após uma publicação em suas redes sociais, outros estudantes sinalizaram diversos problemas com o pagamento e a inscrição. O fato chamou a atenção da organização social Educafro, que recolheu cerca de 300 casos e, no dia 4 de agosto, entrou com uma representação no MPF (Ministério Público Federal).

O objetivo é fazer o Inep reabrir o prazo para o pagamento da taxa de inscrição e garantir que os estudantes lesados possam fazer a prova, marcada para os dias 13 e 20 de novembro. Segundo o Inep, mais de 3,3 milhões de pessoas estão inscritas em todo o país.

Boleto inválido
Além de Thiago, o UOL ouviu o estudante Marcos Ferreira, de 16 anos, de Bragança, no Pará, que também sinalizou problemas com os boletos para pagamento da taxa de inscrição do Enem. Os estudantes emitiram o documento em datas diferentes e também não conseguiram efetuar o pagamento, ainda que estivessem dentro do prazo.

A pedido do UOL, o especialista em tecnologia bancária Marcelo Salomão analisou os boletos dos alunos. Ao fazer uma simulação de pagamento via aplicativo bancário, método também adotado pelos alunos, ele recebeu a seguinte mensagem: “este boleto ainda não foi registrado, por isso ainda não é possível realizar o pagamento”.

Ainda que a tentativa tenha sido feita fora do prazo, o especialista afirma que se o problema fosse o vencimento a mensagem gerada pelo banco seria outra, algo como “boleto expirado”. Segundo ele, pela mensagem emitida, o mais provável é que o título não esteja registrado no Banco Central. Quando emitido, de acordo com o especialista, o boleto pode demorar até um dia útil para ser registrado. Esta situação não se aplica ao caso dos estudantes analisados, uma vez que eles emitiram os boletos dias antes do pagamento, em maio.

Consultado pela reportagem, o Banco Central do Brasil informa que não é possível realizar a cobrança mediante boleto não registrado. “Instrumentos apresentados fora dos padrões definidos em convenção não são considerados como boletos de pagamento, para efeitos da regulamentação do Banco Central”, explica a autarquia.

Salomão acrescenta que, como a falha atingiu alguns candidatos em vez de todos os inscritos, é provável que os boletos inválidos tenham sido gerados por um mesmo servidor problemático. “É um erro muito comum. O boleto foi processado e emitido, mas não foi gerado o arquivo para o banco responsável. É um problema de processamento ou problema do servidor da empresa que desenvolveu o software que emite os boletos ao Inep”, explica.

No documento apresentado ao MPF, a Educafro aponta uma terceira explicação. A entidade afirma que verificou alguns boletos com falhas no código de barras. “Ao que tudo indica, houve uma inconsistência no campo do fator de vencimento (campo 5), indicando 8997 (número referente a 26/05/2022), ao invés de 8998 (número que seria referente a 27/05/2022, data indicada no edital como fim do prazo para pagamento). Essa diferença de um algarismo significaria um dia a menos para pagamento do boleto”, aponta a entidade.

Salomão concorda com essa análise. Ele explica que o boleto é formado por campos que indicam variáveis como banco, lote, registro, entre outros. O campo 5, que é o apontado pela Educafro, corresponde ao segmento do registro, o que pode explicar o fato do documento constar como não registrado.

Organização civil para reabertura do Enem
Uma das mais amplas provas aplicadas no país, o Exame Nacional do Ensino Médio é a porta de entrada para jovens que querem ingressar no ensino superior por meio de programas como o Prouni (Programa Universidade Para Todos) e o Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior).

“É uma sensação de frustração enorme porque o Enem é uma das únicas portas para ingressar no ensino superior para nós, que não temos condições financeiras.” Thiago Alencar, estudante

Depois de expor o seu caso nas redes sociais, Thiago foi convidado a participar de um grupo chamado “ReabreEnem” com outros estudantes que também tiveram problemas com a inscrição ou pagamento do exame.

Entre eles, está a estudante Isabella Lucena, 17, de Vitória de Santo Antão (PE), a 40 quilômetros da capital Recife, que afirma ter sido prejudicda pelo mau tempo na região. Segundo Isabella, as chuvas começaram por volta da segunda semana de maio e se perpetuaram até a primeira semana de junho. No terceiro dia daquele mês, ela lembra que as águas do temporal chegaram a cobrir um veículo no Viaduto do Bairro Cajá, região central da cidade.

“A maioria das instituições financeiras de Vitória fica em uma região muito baixa, que alaga facilmente. A semana em que mais choveu foi a última do pagamento do Enem. Eu não podia sair de casa nem para ir à escola. Além de ficar impossibilitada de transitar, tive problemas de internet. Com isso, não consegui efetuar o pagamento”, conta. Em Alagoas e Pernambuco, cerca de 50 mil pessoas ficaram desabrigadas e mais de 20 morreram no período chuvoso.

“A questão dos alagamentos é muito comum entre os meses de maio e julho. Por ser uma questão corriqueira, eu acredito que o Inep deveria olhar com mais cautela para os participantes dessa região”, conclui Isabella.

Articulação estudantil
O “ReabreNem” foi criado pelo estudante Lucas Filipe, 21, de Praia Grande (SP), que passou a buscar alternativas para expor os problemas listados pelos participantes. Além da questão dos boletos, há relatos de locais de prova alterados constantemente e falhas no site do Inep.

Além de tentar chamar a atenção da entidade por meio de emails e mensagens no Twitter, ele tentou acionar diversos líderes estudantis, deputados e senadores. Recebeu o retorno de alguns deles, como Felipe Rigoni (União Brasil-ES), Alencar Santana Braga (PT-SP) e Túlio Gadelha (Rede-PE).

Entre os ofícios emitidos pelos parlamentares em junho, aos quais o UOL teve acesso, eles pedem ao MEC e ao Inep a reabertura das inscrições e novo prazo de pagamento das taxas do Enem, devido à instabilidade no sistema ou às fortes chuvas em Alagoas e Pernambuco.

Outro lado
Procurados pelo UOL para falar sobre os casos dos problemas nos boletos e dos alunos afetados pelas enchentes, o Inep alegou, por meio de nota, que manteve aberto os canais de atendimento de demandas dos participantes, atuando de forma extraordinária até as 23h59 de 27 de maio, em regime de plantão no último dia de inscrição e de pagamento.

“As solicitações encaminhadas aos canais oficiais do Instituto foram tratadas pontualmente e respondidas em total aderência às regras previstas nos editais do exame. Vale destacar que o Inep continua à disposição para prestar quaisquer esclarecimentos aos participantes do Enem por meio de sua Ouvidoria (0800616161)”, aponta a entidade.

De acordo com Lucas, alguns membros do grupo também recorreram à Ouvidoria do Inep. Entre elas, Luísa Marques, 18, de Brasília (DF), que tentou pagar seu boleto da taxa de inscrição nos dias 26 e 27 de maio, mas não obteve sucesso. Ela entrou em contato com a Ouvidoria, que retornou por email informando que não haveria prorrogação do prazo para pagamento da taxa, ainda que 27 de maio fosse feriado estadual, distrital ou municipal no local escolhido pelo participante para o pagamento da taxa.

“O Inep não se responsabiliza por pagamento não recebido por quaisquer motivos de ordem técnica dos equipamentos eletrônicos, falhas de comunicação, congestionamento das linhas de comunicação, procedimento indevido do participante e/ou outros fatores que impossibilitem a transferência de dados, inclusive alterações no boleto de pagamento causados por ação do requerente, de terceiros e/ou de programas em seu equipamento eletrônico”, diz trecho da mensagem no email.

A mesma mensagem padrão foi enviada para alunos afetados pelas chuvas em Pernambuco, que procuraram a Ouvidoria para relatar seus casos.

Segundo a advogada da Educafro Evelyn Asses, se o MPF concluir que houve violação de direitos dos estudantes, a entidade também poderá entrar com uma Ação Civil Pública contra o MEC e o Inep. O MPF tem um prazo de 20 dias para retornar a manifestação, que pode ser prorrogado por mais 10 dias.

Fonte: UOL Educação