A paulistana Karen Rodrigues, 19, estudou na USP (Universidade de São Paulo), mas nunca pisou no campus do Butantã. Moradora de Guaianases, ela teria de encarar quatro horas de transporte coletivo para percorrer o trajeto de 60 km e voltar para casa. Jamais chegou a fazê-lo. Enquanto era aluna de Ciências Sociais, o curso era remoto devido à pandemia de covid-19. No ano passado, o pai deixou a família e as contas apertaram, e ela teve de arranjar um emprego e largar a faculdade. Estudante do mesmo curso, mas na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a carioca Letícia Nunes, 25, quase abandonou tudo quando o estudo passou a ser virtual: sem computador, só contava com um celular que desligava sem aviso. O problema foi resolvido, mas a ideia de desistir volta ao ver a mãe sustentar sozinha a família inteira e quando tem de estudar com os tiros zunindo na janela da casa no Complexo do Andaraí.
Karen e Letícia viraram as primeiras universitárias de suas famílias graças às cotas raciais. Sem apoio financeiro suficiente, porém, viram a permanência na sala de aula comprometida. É esta a realidade detectada por um dos maiores estudos já feitos sobre o impacto das cotas no país e ao qual o UOL teve acesso. Segundo a pesquisa, apesar de franquear acesso ao ensino superior a populações historicamente afastadas dos bancos universitários, a reserva de vagas instituída pela Lei de Cotas (nº 12.711) não garante que elas concluam os cursos. Para os pesquisadores, auxílios estudantis são cruciais para assegurar a permanência desses grupos.
Conduzida pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da UFRJ e pela Ação Educativa, a pesquisa “Avaliação das políticas de ação afirmativa no ensino superior no Brasil: resultados e desafios futuros” é desenvolvida desde 2020. Contando com o trabalho de 39 pesquisadores de seis universidades brasileiras — as federais de Minas Gerais (UFMG), do Pará (UFPA), do Paraná (UFPR), do Recôncavo da Bahia (UFRB), da Grande Dourados (UFGD), além da própria UFRJ —, o estudo completo será lançado ainda em sua versão final neste ano.
Os primeiros achados do estudo ao qual o UOL teve acesso mostram que a proporção de diplomados entre os brancos aumentou em índice superior ao de pardos, enquanto o índice de formandos entre pretos e indígenas mal se mexeu.
A partir de dados de 2019 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os pesquisadores avaliaram as taxas de escolarização superior de duas faixas etárias: uma mais ampla, de 24 a 65 anos; e outra mais jovem, na faixa entre 24 a 35 anos, apta a entrar para a universidade de 2005 a 2014, época marcada pela democratização de acesso à universidade pública (apesar de as cotas terem virado lei em 2012, 70% das instituições federais e estaduais já contavam com ações afirmativas em 2011).
Os pesquisadores detectaram que a taxa de escolarização superior “cresceu” ao longo das gerações para brancos e pardos, estagnou para pretos e caiu entre indígenas:
- brancos: subiu de 24% para 27%;
- pardos: subiu de 10% para 12%;
- pretos: ficou em 10%;
- indígenas: caiu de 11% para 10%.
“O crescimento dos diplomados tem se dado com a manutenção de desigualdades raciais. É significativo o incremento para a população branca, mas os avanços são bem mais tímidos para os negros.” (Pesquisa “Avaliação das políticas de ação afirmativa no ensino superior no Brasil: resultados e desafios futuros”)
Em paralelo, o estudo mostra uma mudança no perfil dos ingressantes após as ações afirmativas. Em 2010, 10% dos estudantes chegavam às universidades federais via reserva de vagas. Já em 2019, os cotistas representavam 39% dos entrantes.
Os 10 anos da Lei de Cotas no Brasil
Para tornar a equação mais complicada, a pesquisa levantou que a taxa de abandono entre cotistas e não cotistas é similar no início da graduação: 11% e 10%, respectivamente. Os pesquisadores coletaram dados do primeiro ano após a sanção da Lei de Cotas porque este é o período que costuma concentrar os casos de desistência.
Para a pesquisadora Rosana Heringer, professora da Faculdade de Educação da UFRJ e uma das coordenadoras do estudo, o abandono dos cotistas pode estar acontecendo tardiamente, como consequência da falta de auxílio material.
“Há uma perda que ocorre ao longo da graduação. Também há estudantes que entram e demoram mais a se formar por causa das dificuldades financeiras.” (Rosana Heringer, professora da Faculdade de Educação da UFRJ)
Aluna da USP sem nunca pisar no campus
A batalha de Karen começou antes mesmo de entrar na USP. No ano do vestibular, ela conciliou o ensino médio, o técnico em Administração e um cursinho preparatório social on-line. Em 2021, ano de ingresso, as aulas remotas a poupavam de percorrer a distância entre sua casa e a universidade. A pandemia, porém, debilitou as finanças da casa.
Quando o pai de Karen abandonou o lar, a família quase foi à miséria. A renda obtida pela mãe, revendedora de cosméticos, e o auxílio-permanência de R$ 500 recebido por Karen da USP eram insuficientes para custear as necessidades domésticas e gastos com material didático e alimentação.
Para contornar a situação, ela fez um treinamento intensivo em programação, conseguiu uma vaga de estágio e, em poucos meses, virou desenvolvedora júnior. Quando as aulas voltaram a ser presenciais, o trabalho de oito horas diárias inviabilizou a presença na faculdade. “Tenho o sonho de voltar para terminar o curso, mas é difícil”, diz. Só
uma bolsa de ao menos um salário mínimo, hoje de R$ 1.212, possibilitaria seu retorno, calcula.
“Qualquer um que venha de onde eu vim chega à universidade com a mente muito desgastada, lidando com um preconceito estrutural cotidiano, e em poucos dias se depara com falas, ações, o buraco vai ficando cada vez mais embaixo. No fim das contas, a universidade pública acaba agindo como uma empresa: temos diversidade, mas nada de inclusão” (Karen Rodrigues)
Teto de gastos no meio do caminho
Segundo o estudo, “o volume dos benefícios aos estudantes cotistas é muito menor do que a demanda crescente, intensificada pelos efeitos brutais das crises econômica e pandêmica na vida dos estudantes e de suas famílias, gerando insatisfação e cobranças por parte dos estudantes”.
Dificuldades financeiras são o principal motivo que faz homens e mulheres negras pensar em abandonar a universidade, de acordo com pesquisa do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que ouviu 424 mil alunos de 63 universidades federais em 2018. Este também é o principal fator que atrapalha a vida e os estudos apontado por estas pessoas, enquanto a maioria dos homens brancos indicaram a falta de disciplina para estudar e a razão preponderante entre mulheres brancas foram os problemas emocionais.
Os pesquisadores afirmam ainda que as políticas de permanência são abaladas pelos cortes de recursos do ajuste fiscal, como a Emenda Constitucional 95/2016, a PEC do Teto de Gastos, que bloqueia verbas para as universidades.
Na UFRJ, que anunciou que pode fechar as portas em setembro por falta de recursos, o edital para a distribuição de bolsas no primeiro semestre letivo de 2022 recebeu mais de 3.600 inscrições para as diferentes modalidades de auxílio, mas atendeu apenas 1.700 solicitações. Os beneficiários são selecionados conforme renda familiar, local de moradia e condição de saúde do estudante e da família.
Estudar sem PC, mas com tiros
Uma das estudantes a ficar de fora foi Letícia Nunes, que lamenta não ter recebido o auxílio-permanência de R$ 460 apesar de satisfazer a condição para a concessão do benefício (renda familiar de até meio salário mínimo per capita).
Ela ingressou no segundo semestre de 2019 e, durante a pandemia, se viu sem poder acompanhar as aulas remotas. Contemplada com o auxílio-inclusão digital de R$ 1.000, conseguiu comprar um celular.
Em julho de 2020, o pai, único provedor da casa, perdeu o emprego. A partir daí, a família se manteve com a ajuda de parentes e com o auxílio-desemprego até março de 2021, quando a mãe, de 48 anos, foi contratada como secretária de um consultório dentário. Letícia não é a única universitária cotista da família. A irmã, de 21 anos, faz cinema na Universidade Federal Fluminense.
Morando num lugar sem paz e com tiros a qualquer hora, não me adaptei a esse formato. Recebi o auxílio-inclusão digital, mas absorvi pouca coisa. Hoje minha mãe é a única provedora da casa. Estou concorrendo ao auxílio-material didático, de R$ 250 por mês” (Letícia Nunes, aluna da UFRJ)
Orçamento restrito
Pró-reitor de Políticas Estudantis da UFRJ, Roberto Vieira diz que a instituição elevou em 50% a oferta de bolsas no último ano. Ainda assim, 45% dos pedidos não são atendidos, o que equivale a cerca de 8.000 alunos. A causa do problema, diz, é o Ministério da Educação não destinar verba ao Programa Nacional de Assistência Estudantil, que desenvolve ações de incentivo à permanência. Ele conta ainda que os gestores são pegos de surpresa, porque as restrições de verba ocorrem sem aviso.
A gente se prepara para gastar um determinado valor e, no meio do ano, recebemos a notícia de que aquele valor não estará mais disponível. Aí, precisamos fazer mágica” (Roberto Vieira, pró-reitor de Políticas Estudantis da UFRJ)
Este mês, reitores foram informados de uma previsão de 12% de corte no orçamento do MEC para as universidades em 2023. Serão cerca de R$ 600 milhões a menos do que o valor deste ano. A redução afeta diferentes tipos de despesas, inclusive o pagamento de bolsas. Outra previsão de corte foi comunicada aos institutos federais de ciência e tecnologia, que também oferecem auxílios para permanência. Para eles, o orçamento para o ano que vem pode ser até R$ 300 milhões menor do que em 2022.
Desde 2013, o MEC disponibilizava bolsa-permanência a estudantes indígenas e quilombolas (R$ 900) ou em situação de vulnerabilidade econômica (R$ 400). Segundo o ministério, a concessão do auxílio foi interrompida em 2019, quando 4.000 bolsas foram distribuídas. Entre 2020 e 2021, os benefícios não foram concedidos, diz a pasta, porque o gasto não estava previsto nas Leis Orçamentárias Anuais. Em 2022, ano eleitoral, o governo federal já concedeu 2.000 novas bolsas para indígenas e quilombolas, com previsão de outras 1.000 para o segundo semestre.
Fonte: UOL