Empresas estrangeiras contratam até para home office no Brasil
RIO – A mão de obra altamente especializada está deixando o país. Profissionais de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) têm sido disputados a peso de ouro no mundo, deixando o Brasil com poucas chances de competir com salários oferecidos na Europa, nos EUA e no Canadá.
Com bolsas científicas minguando no país, pesquisadores de outras áreas de inovação também têm sido atraídos por oportunidades no exterior. A pandemia acelerou essa migração especializada, que já vinha acontecendo no país com a economia estagnada. Agora, com a expansão do home office, o profissional sequer precisa sair do Brasil para trabalhar no exterior. E ganhar em moeda estrangeira exatamente no momento que o real sofreu forte desvalorização.
— Se o trabalho remoto ficar permanente, isso vai pôr o mercado de tecnologia em risco no Brasil. Não tem como competir com a Alemanha. Um desenvolvedor de software em São Paulo ganha meio salário mínimo alemão — alerta Pierre Lucena, presidente do Porto Digital, parque tecnológico com 330 empresas no Recife, que tem 11 mil empregados e 1.500 vagas abertas sem conseguir preencher.
E não há produtividade que aumente quando o país qualifica a mão de obra, mas não é competitivo para mantê-la. Acaba exportando inovação.
O setor de TIC vai precisar contratar 70 mil pessoas por ano até 2024 para dar conta da demanda, mas, como só forma 46 mil a cada ano, há um déficit crescente desses profissionais, segundo a Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom).
É para a alemã BMW que o engenheiro da computação, Angelo da Silva Brito, de 32 anos, projeta sistemas embarcados. Ele trabalha em Portugal, para onde foi em 2019, numa empresa que presta serviços para a fornecedora desses sistemas à montadora alemã. Nesse período, já foi promovido e continua a receber propostas para ir para outros países.
— Durante a pandemia, já recebi oito propostas de emprego. Há empresas especializadas em buscar mão de obra de outros países. Procuram pessoas no mundo todo — diz Brito, para quem a expectativa de melhor qualidade de vida e de crescimento profissional também pesa na decisão. — O salário é maior que o pago no Brasil, e as pessoas estão em busca de mais segurança.
Oportunidade atraente
O engenheiro sempre foi refratário à ideia de sair do Brasil, principalmente de sua cidade, Recife, mas acabou não resistindo às oportunidades que se abriram na Europa. Ele trabalha no Cais de Gaia, no meio do polo turístico do Porto, com vista para a cidade histórica, mas teve de se reinventar. Especializado em hardware, em semicondutores, chips e processadores, viu esse mercado morrer no Brasil em 2016, ano que a economia brasileira encolheu 3,3%. Hoje, faz projetos de software de bordo:
— Trabalho num projeto que envolve 300 pessoas, 120 são brasileiros, há uns 20 indianos, chineses, alemães, franceses e 50% são portugueses. O salário ainda é baixo para a Europa, mas é alto para o Brasil. Além de haver muita gente querendo vir para cá, atrás de educação, saúde e segurança. A maioria dos profissionais de fora que conheci teve crescimento na carreira ou foi para empresas melhores.
A física Patrícia Ternes tem história semelhante. Em janeiro de 2019, recém-casada e sem pretensão de sair do país, mudou de área diante da chance de desenvolver sua carreira como pesquisadora na Universidade de Leeds, no Reino Unido, onde recebe uma bolsa de 40 mil libras por ano, o equivalente a R$ 24,3 mil por mês. Ela fez mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisando física teórica computacional, com modelos para sistemas da natureza.
Seu foco era o comportamento da água. Mas ela não conseguiu bolsa de pós-doutorado. Tentou duas vezes, mas os dois últimos editais não foram cumpridos, afirma. Então decidiu trocar Porto Alegre pela cidade inglesa, conta:
— Fiz por necessidade. Mudei completamente de área. Estou no Departamento de Geografia, fazendo análise de dados, vendo como as pessoas se movem dentro das cidades, para criar um modelo de cidade inteligente, monitorar onde há mais fluxo, menos fluxo, correlacionar com poluição, acesso à internet e tecnologia.
O profissional raro e formado no Brasil que vai embora por falta de oportunidade contribui para o desenvolvimento e a solução de problemas de outros países. Patrícia, por exemplo, está pesquisando a maneira como as pessoas e a doença se locomovem na cidade no quadro da pandemia. Todo o seu grupo de trabalho mudou o foco para ajudar no combate à Covid-19. O contrato dela é de três anos, mas já há propostas na mesa, e ela deve continuar no Reino Unido.
Falta de estrutura
Marcia Barbosa, pesquisadora do Instituto de Física da UFRGS, foi professora de Patrícia, uma das duas alunas que ela perdeu para o exterior recentemente. Ela conta que, com medo de não conseguir financiamento, o cientista começa a questionar se vale a pena continuar a carreira por aqui. E ainda vê um viés de gênero, com maior interesse pelas mulheres.
— A pesquisa parou no Brasil, mas não no resto do mundo — diz a professora. — Toda economia precisa de ciência e tecnologia para decolar. Isso me deixa muito brava. A gente forma pessoas, da graduação ao pós-doc, e, quando estão produzindo, não há uma bolsa para fixá-las no Brasil. Está todo mundo indo embora.
A professora Ana Maria Carneiro, da Unicamp, que está prestes a começar uma pesquisa sobre as motivações e o desenvolvimento da carreira desses profissionais no exterior, cita mais dois motivos para deixar o país: a falta de recursos para manutenção de laboratórios e a política.
— Existe autocensura. O pesquisador se pergunta: será que o que vou pesquisar vai provocar grupos conservadores radicais que podem me perseguir nas redes sociais? Se ele tem condições, sai do país.
Estágio fora sem se mudar
Na área de tecnologia, a abordagem já acontece na faculdade. Anna Gabriela Carvalho, de 23 anos, estuda Ciência da Computação no CESAR School, que fica no Porto Digital. Ela continua no Recife, mas desde agosto de 2020 faz estágio numa empresa do Canadá, ganhando em dólar canadense. A remuneração inicial, equivalente a R$ 4 mil, era o dobro do que ganhava estagiando numa empresa brasileira. E o salário já aumentou:
— Fui promovida a estagiária plena, e o salário está em R$ 6 mil. O processo foi rápido, todo remoto. Tem muita vaga nessa área, não tem como ficar sem trabalhar — diz Anna Gabriela, que desenvolve front-end para web, a interface de navegação de um site, e sempre quis uma experiência fora.
Segundo Lucena, do Porto Digital, um desenvolvedor já formado ganha, em média, R$ 4 mil no Brasil. Um engenheiro de software sênior, capaz de gerenciar projetos mais complexos e liderar equipes, ganha entre R$ 15 mil e R$ 20 mil:
— Esse profissional não passa um dia desempregado. É muito disputado no mercado numa área que está crescendo. É um problema mundial. No caso do Brasil, não se esperava demanda tão grande, e não nos preparamos para isso, como sempre.
Perfis mais procurados
A demanda maior é por programadores de webmobile, profissionais que estruturam plataformas de dados em nuvem, analistas de grandes bases de dados, especialistas em segurança de informação. E com competências socioemocionais para liderar, descreve Sergio Paulo Gallindo, presidente executivo da Brasscom:
— Nosso setor não é mais o mesmo e não voltará a ser. A realidade digital, as videoconferências e as ferramentas de cooperação se proliferam.
É por meio dessas ferramentas que Danilo Torres, de 33 anos, tem se comunicado com seu empregador nos EUA. Formado em Ciência da Computação, com MBA em gestão empresarial, passou cinco anos em start-ups e incubadoras de empresas de produtos digitais e inovação. Abordado em uma rede social por um headhunter (caçador de talentos), há dois meses trabalha em casa para uma empresa americana, ganhando 50% acima do mercado brasileiro.
— Estamos formatando produtos sobre fornecer dados para as empresas. Gerencio uma divisão da América Latina — conta Torres, pai de uma menina de 3 anos. — Confesso que, durante muito tempo na minha carreira, pensei em me mudar para o Canadá, EUA. Mas, hoje, nem penso mais tanto. Posso fazer isso sem precisar me mudar.
Pedro Torres, de 29 anos, desenvolve aplicativos para smartphones e é outro brasileiro trabalhando para fora sem sair de casa. Presta consultoria para duas empresas, uma na Argentina e outra nos EUA.
— Tem uma demanda surgindo no Brasil, mas é muito difícil ter um salário que possa competir com os lá de fora — diz ele, que prefere não revelar quanto ganha.
Foto: O Globo
Fonte: O Globo